segunda-feira, novembro 24, 2003

O MITO DA NÃO-MORTE
Alguns quilitos a mais, a idade e as insistências da minha filha, fazem-me recorrer, de vez em quando, a uma alimentação mais cuidada, do tipo “isto é tão intragável que até deixas mesmo de comer, meu !”. Aqueles croquetes de soja e empadas de lentilhas, completamente indescritíveis, conhecem ? Enfim, a amargura de ter de mastigar estas iguarias fez-me reflectir nesta característica tão vincada do nosso tempo, nas sociedades de abundância : a negação permanente da morte, a sua quase recusa. E mais : o dever de estar em perfeitas condições físicas, sempre, em qualquer idade. Suponho que mesmo na morte.
Esta valorização ( excessiva ? ) da vida é um facto novo, creio eu, e nada tem a ver com a concepção cristã da morte, por exemplo. Quase todas as religiões pretendem desdramatizar a morte, até mesmo fornecer, a nível psicológico, algumas compensações, a perspectiva de uma outra vida ...
Este fenómeno é o oposto, mitifica esta vida terrena, busca a eterna juventude física, prega a rejeição da própria ideia de morte. A maior longevidade das pessoas de hoje favorece esta atitude, sim. Mas não é apenas isso : a nossa sociedade tornou-se hedonista, ninguém está disposto a sacrifícios, ninguém quer aceitar o risco de morte inerente a certas acções, cada vez menos jovens se deixam arrastar para as responsabilidades, riscos e trabalho de criarem filhos. Mesmo os grandes ideiais colectivos são postos de lado, não vá aparecer a necessidade de os defender com a vida ...
O mito moderno é o da vida eterna. Sem rugas. Sem barriga. Sem celulite. Aqueles desfiles de manequins importados de Auschwitz continuam a impor os seus padrões. As boas clínicas médicas organizam programas especiais de check-up, mesmo a prestações, se for preciso. Os regimes alimentares são obrigatórios e numerosíssimos. As plásticas, um must absoluto. Os ginásios prosperam com o arfar de cinquentões que nunca tinham corrido nem sequer para o autocarro. Quarentonas procuram desesperadamente o formato ideal para o “redondo” ( leia-se rabo ), suando em bica, acima e abaixo, em banquetas ridículas de eficácia duvidosa. Dezenas de pais de família desafiam a gravidade e a paciência dos peões em arriscadas corridas de bicicleta, por essa cidade fora. A euforia do prazer e a esperança da vida eterna sente-se no ar.
Pois é.
Por mim, não tenho pressa de morrer, que fique bem claro. Mas não alinho nesta euforia maluca. Só me resigno a comer os tais croquetes de soja se, de vez em quando, puder ver á minha frente um bom cozido à portuguesa. E faço o que for preciso e vou onde for preciso, sem pensar duas vezes na morte, se achar que tal é importante para mim, os meus amigos ou o meu país.
E, quando morrer, quero ver a cara desta gente, lá onde todos nos vamos encontrar, quando descobrirem que as plásticas, o step, as máquinas do ginásio e até os croquetes de soja estão muito fora de moda naqueles verdes sem fim !!!
Ora toma !

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