quinta-feira, março 18, 2004

A NOITE

A noite vem e com ela o desânimo, a escuridão, a memória do passado. Bem podem os amigos tentar animar-me, dizer-me que a vida é bela ... não acredito, eu sempre a vi, a essa senhora, ser tão depressa bela como soturna e perigosa. Porque iria agora ser diferente ?
Estar no ultimo quarto da nossa vida é tremendamente destruidor, se se pensa muito nisso. Nos ultimos anos, tenho vindo de perda em perda até ao nada. A normalidade, o imprevisto, o receio, tudo se conjugou para me tornar apenas num ser que já foi. Com a agravante de me lembrar bem de o ter sido. Espanta-me, a minha quase derrota de hoje. Nunca pensei que fosse tão dificil envelhecer e ficar só. Ou será apenas uma fase, como tantas outras nas nossas vidas ? Talvez, deve ser isso, sim ...

É assim que sou, tão volúvel como uma prima-dona ou uma pop-star. Num dia amo a vida e o belo, no dia seguinte vejo tudo pintado de um cinzento monótono e vazio. A única solução foi sempre a de me manter a trabalhar até embotar a lucidez e a capacidade de pensar sobre mim.

Acho que, nascido com outros ventos, teria sido poeta ou anarquista ou um doido iluminado como Almada Negreiros. Provavelmente, acabaria como Antero do Quental, num qualquer banco de jardim. Ou talvez não.
Os deuses não me dotaram dessa forma, limitaram-se a pôr-me dentro um bocadinho de pensamento e uma dose maior de indiferença. Foi assim que fui feito, não sou capaz de me refazer.

Ai de quem se aproximar de mim. Se odeio, sou impiedoso, se amo sou imprevisto, possessivo umas vezes, indiferente outras, um turbilhão emocional a maior parte do tempo. Conheço a minha variabilidade, tento evitar que se aproximem de mim. Sobretudo as pessoas que poderiam amar-me e a quem eu iria magoar, mais tarde. Mais vale só.

Não me lastimem, peço-lhes, nem tentem mostrar-me caminhos. Se são meus amigos deixem-me continuar a caminhar por onde vou.
Podem é acenar-me, lá de onde quer que estejam, e atirar-me um sorriso de compreensão e amizade.
É quanto basta.

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