O MEU PORTO DE ABRIGO PESSOAL
O TIRAGOSTOS é uma pequena loja de pronto-a-comer, datada de meados dos anos 80, propriedade de uma pessoa minha amiga. Fica quase á frente da porta do prédio onde vivo, em Lisboa (Benfica), é só atravessar a rua. É uma sala decorada com sobriedade e bom gosto, azulejos brancos, atravessados por lintelos amarelos, móveis de madeira castanha, com portas de ripas entrecruzadas. No alto dos armários, galinhas de cerâmica e dois ou três panelões em latão brilhante. Nas paredes, três ou quatro aguarelas de patos selvagens, com uns verdes e azuis muito suaves. Não há outra loja assim, acreditem.
Conheço esta pequena loja desde que foi inaugurada, em 1985 ou 1986. A minha mulher costumava lá ir frequentemente, beber café e ou comer uma das excelentes empadas caseiras de galinha. Depois, quando ela partiu, habituei-me também a ir lá todos os dias, com a minha filha. Pequeno-almoço, almoço, apenas conversa, esta pequena loja tornou-se a minha referência diária, ao longo dos últimos anos. A simpatia e o sorriso da sua dona acolheram-me e ajudaram-me, nesse momento da minha vida, confesso. Tornámo-nos amigos, convivemos para além das quatro paredes da loja, mas a loja, aquela loja, continuou sempre a ser o meu porto de abrigo diário.
Aqui há uns anos, quando a dona decidiu fazer obras de renovação da loja, empenhei-me no processo, orientei tecnicamente os trabalhos, fiz mesmo muitas coisas com as minhas mãos, gastei largas dezenas de horas dentro daquelas paredes, sózinho, discutindo com o fogão e a fritadeira a incompetência do pintor, arregaçando as mangas e fazendo eu próprio o que o homem deveria ter feito.
Enfim, algo de mim ficou naquelas paredes e naquele pavimento.
Quanto à senhora sua dona, aquela loja foi a sua companheira fiel de muitos anos, todos os dias, com sol e com chuva, com clientes ou sem eles, em momentos de euforia e muitos outros de desânimo. Aquela pequena loja apossou-se de grande parte da alma da sua dona, acho eu. Da minha também, o que é estranho, porventura.
A verdade é que a loja mudou hoje de dono. A sua ( verdadeira ) dona alugou a exploração da loja a um casal, eram precisos sangue e entusiasmos novos.
Para ela, a sua dona de sempre, foi o fim de uma relação de 25 anos, sem quebras de fidelidade. Vai ser difícil para ela, senti-o hoje, ao ver o ar infeliz e desnorteado dessa minha amiga. É sempre doloroso terminar uma relação, afinal.
Quanto a mim, foi o fim de um era, mais do que de um ciclo. Não só pela minha amizade com a dona, mas também pela relação que eu próprio desenvolvi com a loja.
É o fim do meu porto de abrigo diário, do meu café matinal e da minha primeira conversa do dia, acolhido pelo sorriso amigável da minha amiga.
Pode ser que continue a entrar naquela loja, para um café ou mesmo um almoço, mas nada será o mesmo. Uma parte da minha vida desapareceu, com aquela mudança na loja. Sei que uma enorme parte da vida da sua dona também fica para trás, para sempre embebida naquelas paredes e naqueles bancos amarelos.
The show must go on, porém. Muita sorte aos novos "donos", muita sorte à minha amiga. Por mim, acho que não vou conseguir substituir o meu porto de abrigo diário, os anos não perdoam.
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