sábado, dezembro 18, 2004

A COSTA DOS MURMÚRIOS



Ontem fui ver “A costa dos murmúrios”, de uma jovem cineasta portuguesa, baseado no livro do mesmo nome de Lídia Jorge. Confesso que não li o livro, mas sei que a autora esteve em Moçambique, por volta de 69/70, época em que decorre o livro/filme. Era então casada com um oficial paraquedista e assistiu, digamos que de camarote, a certos aspectos da guerra colonial.
É claro que uma obra de ficção é tão ficção quanto se queira. Mas também é claro que qualquer ficção com base numa certa realidade acaba sempre, inevitavelmente, por mostrar quanto e como essa mesma realidade afectou a artista.
Neste caso, a ficção construida pela escritora e decalcada pela cineasta acaba por reduzir uma realidade extremamente rica e complexa numa série de clichés sequenciais : os militares são todos violentos, machistas, criminosos de guerra e politicamente alienados ; as mulheres desses oficiais aborrecem-se de morte enquanto os maridos fazem a guerra e entretêm-se portanto todas elas a dar umas quecas por fora do casamento, para manter a prática ; os jornalistas locais são esclarecidos e sabem o que se passa mas não podem fazer nada, a não ser participar entusiasticamente na actividade lúdica anteriormente mencionada das esposas sózinhas ; finalmente, os maridos corneados, quando regressam da guerra, dedicam-se a jogar à roleta russa com os amantes das mulheres e umas vezes safam-se ... outras vezes morrem...
Brilhante. Fiquei estarrecido com a riqueza e pureza cristalina da criação artística de Lídia Jorge.
Eu bem sei que ela era então casada com um paraquedista e que estes eram acusados de usarem boinas verdes para disfarçar o musgo que lhes crescia nas cabeças ...ehehehehe .... Neste caso, porém, acho que o musgo a afectou a ela, também ...
É que, leitores, eu também fazia parte deste filme que agora vi, mas na época e no local original do “crime”. E mesmo respeitando o direito à ficção e percebendo até algum ressentimento e horror da autora perante tal realidade, ainda assim me surpreendo com a miopia e o preconceito revelados.
Quanto à linguagem cinematográfica usada, apenas um comentário : um filme não pode, não deve ser uma sequência de planos filmados e depois colados, com uns textos em voz off para dar coesão. Eu não sei fazer filmes, mas sei ler um filme. E aquilo que vi é apenas uma tentativa de filme, nada mais.
Fiquei com lágrimas não choradas, por dentro. Um dia hão-de sair.

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